Quinta-feira, 17h. Faltavam só 60 minutos para a vida de Daniel  acabar. A mãe não confiava mais em dar dinheiro para o filho de 15 anos  que já tinha roubado a vizinhança toda e torrado tudo em droga. “Os  homens” tinham prometido dar o tiro na cara. O medo maior do garoto, no  entanto, era da sessão de porrada que viria antes da “bala de  misericórdia”. Quem deve ao tráfico, é sabido, não tem morte rápida. E,  daquela vez, Daniel não tinha a menor esperança de conseguir R$ 50 para  salvar sua pele. O prazo vencia às 18h.
Por valor ainda menor, outros meninos da mesma idade de Daniel deixam  a vida por causa da dependência química. A nota de R$ 10 que eles não  entregam na "boca” para pagar o quanto devem por uso de crack vira o  preço médio de suas vidas, segundo constatou  nos  programas de proteção à criança ameaçada de morte em São Paulo, Rio de  Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e Rio Grande do Sul.
Nunca ninguém contou quantos deles morreram por não darem dinheiro ao  mercado paralelo de entorpecentes. Sob a forma de algarismos, estes  meninos estão misturados entre os dados que fazem da violência a  principal causa de morte de homens brasileiros entre 10 e 25 anos. Estão  também entre os números que contam a escalada de 32% de homicídios nos  últimos 15 anos. Freqüentam ainda as informações sobre déficit de vagas  para tratamento clínico – e eficiente – para combater o vício nas  drogas.
Daniel tinha 50 minutos para não fazer parte destes estudos numéricos  do IBGE e Ministério da Saúde. A tentativa de salvamento foi  acompanhada pela reportagem que assistiu ao início da ação de uma rede  articulada e sigilosa no País que, diariamente, trabalha para que estes  adolescentes não virem estatísticas resultantes da parceria entre  drogas, saúde falha e assassinatos.
O rosto
A sigla do grupo é PPCAAM: Programa de Proteção à Criança e ao  Adolescente Ameaçado de Morte. O início da atuação é o ano de 2003, em  São Paulo e Belo Horizonte. O avanço da epidemia de crack – e a  consequente proliferação de homicídios, como detectou pesquisa da PUC de  Belo Horizonte – fez com que a Secretaria Especial de Direitos Humanos  tivesse a necessidade de ampliar a rede.
Hoje, 11 capitais já têm o programa de proteção, escolhidas de acordo  com os níveis altos de letalidade juvenil. A missão é acolher pessoas  com menos de 18 anos e com a vida ameaçada. Além dos garotos, alguns  familiares também precisam ser protegidos. Eles mudam de bairro, de  escola e de rotina por pelo menos três meses. Em casos mais extremos,  até a identidade é trocada. Orkut, MSN, celular são proibidos. Nada pode  ser transformado em pista para seus algozes. Se um deles for morto  enquanto estiver protegido, é decretado o fim do pacto de confiança  selado, com muito custo, entre os agentes do PPCAAM e os meninos.
Até agora, já passaram pelas mãos do programa 1.592 crianças e  adolescentes, 60% deles por causa do envolvimento com o tráfico de  drogas. Quando não são os traficantes que os sentenciam à morte, são  fome, falta de moradia adequada, abandono dos pais, transtornos mentais,  tentativas de suicídio, testemunho de crimes e brigas de gangue que  dividem o ranking de outros motivos para a proteção.
“Mas mesmo quando a droga não é o motivo principal para a proteção,  os meninos e meninas sempre trazem algum relato que associa seus  problemas ao uso de cocaína, crack e álcool”, afirma a coordenadora do  PPCAM do Espírito Santo, Renata Freire Batista.
No mês passado, 641 jovens no País estavam tentando sair do alvo da  morte violenta por meio da proteção dos PPCAAMs. Os rostos que precisam  ficar escondidos têm perfil quase unânime: 76% são negros, 59% têm entre  15 e 17 anos, 95% não terminaram o ensino fundamental. Metade – apenas  metade – é desligada do programa por consolidação da inserção social e  cessação da ameaça.
O restante? Foge, não aceita a proteção, não consegue ficar seguro  sem as drogas, não encontra uma opção de tratamento público e disponível  para "já". "Ou simplesmente não entende que morrer é perigoso", conta  Célia Cristina Whitalker, secretária executiva da comissão municipal de  direitos humanos de São Paulo, pasta responsável pelo PPCAM paulistano.
“Eles já experimentaram a violência tantas outras vezes antes de  chegar até nós que têm dificuldade para reconhecer como é uma vida sem  ameaça”, conta Célia.
“São tão seduzidos pela violência, que o nosso primeiro desafio é mostrar que não há glamour em ser ameaçado.”
“Fichinha”
Naquela quinta-feira que prometia ser a última da vida de Daniel ele  só tinha medo da morte porque, uma semana antes, viu de perto como ela  poderia seria cruel. Seu amigo de “rolê” não havia honrado o compromisso  de pagar o que devia. Levou tiros na nuca e nas costas. Morreu na hora,  estirado no beco da capital paulista.
Daniel apanhou dos mesmos caras, pouco antes de assistir o menino ser  alvejado. Com o olho esquerdo roxo e a voz rouca de tanto ser  enforcado, ele tentava explicar a um grupo de profissionais que serve de  porta de entrada do PPCAAM porque preferia o dinheiro para sanar sua  dívida de R$ 50 do que ser protegido para não acabar como o colega.
“Se eu não pagar, eles vão arrombar a minha casa, matar minha mãe e  meu irmão. O que vocês assistem nos programas de TV que mostram o mundo  do crime é fichinha perto do que eles fazem na vida real.”
Daniel deu a primeira tragada no cigarro de maconha aos 10 anos. Não  gostou do barato que deixava tudo “meio em câmera lenta”. A cocaína era  mais interessante. Adrenalina pura, conseguida no banheiro da escola,  com uma só cheirada.
Na primeira vez deram “a farinha” de graça. Na segunda, já cobraram.  Um dia a mesada não deu mais para sustentar a droga preferida, cara  demais para o bolso do adolescente. Por isso, às vezes, ele se rende ao  crack. Para a boca de fumo, o garoto já levou o aparelho de som, depois  os brinquedos do irmão mais novo, os CDs da mãe, o GPS do pai. Em uma  dessas reviradas de gavetas na calada da noite, encontrou uma faca usada  para abrir cartas. Passou a praticar furtos na vizinhança. O olhar de  medo dos vizinhos começou a ser interpretado como sinal de respeito. Em  segredo, a mãe até rezava para ele ser pego pela polícia.
“Juro que não sei onde errei. O meu filho menor não é assim. O Daniel  tinha tudo para ser o que ele quisesse. Quem na vida sonha em ser  bandido?”, questionava-se a mulher.
Cheio de marra – a penugem escura e rala sobre o lábio indica apenas o  início da puberdade – Daniel exibia na mão direita um anel de ouro  falso. Ele só tinha 14 anos quando se apaixonou por uma garota de 19 e  colocou a aliança para mostrar compromisso. “Sou mais ou menos noivo”,  disse com um sorrisinho. Pensava um dia fazer dinheiro, mudar dali e  comprar um carro. Aprendeu a dirigir aos 11 anos. Adora o Orkut e a  internet, onde consegue baixar os Proibidões do Funk, seu estilo de  música favorito. Foi em tudo isso que ele pensou antes de se convencer  que, naquele dia, não poderia voltar mais para a rotina de sempre.
A mãe estava junto com o garoto na tentativa de salvamento. E junto  com os outros profissionais do programa convenceu o menino a aceitar a  proteção. “Sempre soube que a minha vida iria acabar uma hora. Não quero  que ninguém adiante isso”, falou o garoto para expressar que, sim,  aceitava “ser protegido”.
Sem saída
O destino de Daniel era incerto, o relógio andava rápido e o grupo de  funcionários precisava encontrar um local seguro para ele passar, pelo  menos, uma semana. Os telefones foram disparados em busca de algum canto  da cidade. Os garotos que estão no fio da navalha podem ser o fósforo  que faltava em um barril de pólvora, caso encaminhados para algum  local errado. Em uma das ligações, um endereço que faz parte da rede  sigilosa aceitou receber o adolescente. Os ponteiros do relógio já  marcavam 17h45. A mãe deu um beijo na testa dele e sugeriu “juízo”. Foi  embora orientada a pagar o que o filho devia caso “os homens"  aparecessem.
Apesar da história de ameaça relatada por aquela família, é preciso  uma avaliação do Ministério Público, do Juizado da Vara e da Infância ou  do Conselho Tutelar para algum menino ingressar de fato no PPCAAM.  Daniel passaria por este processo enquanto provisoriamente deixava o  bairro onde morava.
O critério de inclusão precisa ser minucioso – e rígido – pois privar  alguém de liberdade para garantir a sobrevivência não pode ser regra,  precisa ser exceção. “Em várias ocasiões, identifica-se que a principal  questão posta é a vulnerabilidade social e não a ameaça de morte. E, por  outro lado, algumas famílias optam por buscar outros meios para  garantir a proteção das crianças e adolescentes (como a casa de parentes  em outros municípios), visto que a inserção no programa provoca algumas  mudanças”,explica Flora Luciana de Oliveira, coordenadora do PPCAAM do  Rio Grande Do Sul, que começou a funcionar de maneira integrada só este  ano.
A decisão de quem será ou não protegido é de revirar o estômago, mas  não supera a angústia vivenciada quando o PPCAAM não existia, lembra  Cláudia Tourinho, coordenadora do programa da Bahia, instalado em março  deste ano. “Não tínhamos saída”, conta.
“Muitas crianças podem ter sido mortas por não chegarem até a gente.  Era muito difícil conviver com estes pedidos. Hoje, um pouco de  tranqüilidade é trazida com a rede. Nenhum menino que chegou até nós  morreu”, comemora.
Valido muito pouco
O rótulo “ameaçado de morte” pesa. E a origem dele é confusa, explica  o juiz da Vara e Infância e Juventude de Santo Amaro (na capital  paulista), Iasin Issa Ahmed, que coordenou o PPCAAM de São Paulo por  três anos.
“Não sabemos se é a droga que atrai a violência ou o inverso. A  história de início nebuloso destes meninos tem desfecho ainda mais  incerto" conta Ahmed.
“Vivemos com as mãos atadas após a proteção. Se o menino está  protegido e tem uma crise de abstinência por falta da droga, é muito  difícil conseguir com o governo o tratamento para ele. Não há vagas.  Eles fogem e, no dia seguinte, vamos escutar um novo pedido, de uma mãe  desesperada, que não suporta mais a contagem regressiva para o  assassinato de um filho seu.”
Renata Batista, coordenadora do Espírito Santo, diz que qualquer  garoto, de classe média, pobre ou rico, que faz uso excessivo de droga é  vulnerável à ameaça. “Mas a lógica que predomina entre os que podem ou  não ser exterminados é perversa. Existe ‘os matáveis’ e os ‘não  matáveis’. O primeiro grupo não tem pai, mãe nem ninguém para pagar as  dívidas de drogas. E a vida destes meninos tem valido muito pouco. Não é  por mil ou dois mil reais. O preço é 10 reais” lamenta.
Naquele início de noite de quinta-feira, Daniel ainda não sabia de  era do grupo dos matáveis ou não. O medo, nítido em sua expressão no  início, agora começava a dar lugar para uma impaciência, quase  incontrolável. Ele mexia as mãos e os pés sem parar. Bebeu quase dois  litros de água. Já falava pouco e não olhava mais ninguém nos olhos.  Indícios de que as quase 36 horas que estava sem usar cocaína estavam  fazendo efeito.
Os profissionais que o acompanhavam tentavam puxar assunto e pouco  conseguiam entrar na mente do garoto impaciente. Ele não sabia o que era  Holanda, o que impediu a continuidade da conversa sobre os planos de  morar fora do Brasil. Não conseguiu escolher uma matéria preferida da  escola. Não falou de música. Até que o fio condutor do diálogo,  finalmente foi encontrado: ao lado do veículo em que estava, passou um  carro antigo e os olhos de Daniel brilharam. “Sempre quis um desses”,  falou apontando a um Chevette. Mas o sorriso só apareceu quando falaram  de super-heróis. “Sou fissurado naqueles heróis que são mutantes,  sabe?”, disse o garoto.
X-men e sushimen
Quase todos os garotos que ingressam no PPCAAM sofrem mesmo da  “síndrome de super-heróis”. Primeiro porque são garotos, o que torna a  fantasia natural. Segundo porque enfrentam enredos que parecem existir  só em filmes de ação, em que bandidos e mocinhos não têm função  definida.
“São super-heróis que dão o mesmo valor para a vida e para morte”, compara Célia, a coordenadora ddo PPCAAM paulistano. Às 21h, ainda vivo – mesmo após quatro horas do fim do seu prazo –,  Daniel já não pensava mais no tempo enquanto falava com entusiasmo sobre  o X-men. Entrou em seu "lar provisório" com o compromisso de não contar  sobre a sua ameaça. Ele agora era um super-herói na imaginação.
Para a segurança do adolescente, a reportagem não pôde acompanhá-lo  por mais tempo. Se é impossível saber como foi a “sexta-feira do X-men  de 15 anos”, Cláudia Aguiar, coordenadora do PPCAAM de Belo Horizonte,  afirma que o desafio diário de não perder a esperança de salvar estes  meninos é muito compensador.
“Um dia uma de nossas funcionárias foi a um restaurante japonês e  encontrou um dos meninos que já havia passado pelo PPCAAM trabalhando  como sushiman, tocando a vidinha dele, feliz da vida. Foi tão  recompensador... É isso que nos dá força.”
Quanto vale?
Daniel tomou banho, vestiu roupa de frio e despediu-se do grupo que,  por um dia, salvou a sua vida. Antes de falar tchau, topou escrever em  uma folha de caderno quais são seus sonhos. Nas seis linhas acima,  deixou explícito que não custa caro fazer este menino feliz. Ao mesmo  tempo, evidenciou que sua vida não pode valer só R$ 10.
"Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz!!!! MSN: sergiocristao20112011@hotmail.com srcalabraro@ig.com.br
Abra o teu coração para Jesus
Digno ès, Senhor, de receber Glória, e Honra, e Poder; porque Tu criaste todas as coisas, e por Tua vontade são e foram criadas.
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